"A minha pátria é a língua portuguesa"

Wednesday, March 01, 2006

Bú!

A experiência pessoal ensinou-me que aquele sentimento a que comummente chamamos inveja, o qual outros preferem catalogar como pecado mortal, pode assumir dois aspectos. Um deles é como um cancro que cresce insidiosa e silenciosamente corroendo a vítima, sugando-a segundo a segundo. Conduz inexoravelmente à maledicência e alimenta-se da ganância da própria vítima. É a forma mais maligna.
A outra é como uma criança traquina que sai detrás de um esconderijo e nos surpreende, dando uma gargalhada de puro gozo à custa da grotesca cara que a sua vitima fez. Serve para nos colocar à prova, para fazer-nos questionar o nosso modo de estar na vida, as nossas concepções, os nossos ideais.
Enquanto, dias atrás, andava na Baixa de Ponta Delgada à procura de uns sapatos de cerimónia, a inveja brincalhona meteu-se no meu caminho. Aproveitou-se, só encontro esta explicação, do facto de os meus nervos estarem em frangalhos por ter entrado em tanta sapataria, por ter repetido tanta vez que “calço 37” e por ter ouvido vários clichés como “este sapato faz uma toilette muito elegante”.
Quando por fim encontrei os sapatos ideais, ou pelo menos os que achei que me ficavam melhor, decidi voltar para casa e foi então que ela me fez “Bú!!!”. Na Avenida Marginal, enquanto caminhava e resmungava interiormente contra uma tarde perdida, voltei a cabeça, não sei porque instinto, para uma esplanada virada para o mar e reparei num homem jovem e de bom porte que lia descontraidamente o Equador diante de uma chávena de café.
A leitora que há em mim sabe perfeitamente que poucas coisas se assemelham ao prazer de ler um bom livro. E se a isso lhe juntarmos um lindo de dia de Inverno com sol e vento nas doses certas, então é mais do que um prazer: é um momento de felicidade.
Senti-me amargurada por ter passado uma tarde à procura de uns sapatos caros e com um salto assassino, que na melhor das hipóteses só me farão os pés num oito (as piores perspectivas são ir fazer uma visita ao Serviço de Ortopedia do Hospital), em vez de ter aproveitado a doçura inconstante do caprichoso clima açoriano. Daquele homem incógnito, do qual já nem recordo o rosto, invejei o momento em que saiu de casa com o livro debaixo do braço para ir ler. Invejei o mar de um azul indefinível que se estendia à sua frente. Invejei o vento que lhe folheava as páginas. Invejei o sol tímido que encarava o título da obra como um desafio à intensidade dos seus raios.
Porque me ensinaram em criança que a inveja é uma coisa feia, se anos depois venho a descobrir que nem sempre é assim? Parece ser esse um dos pilares da pedagogia: simplificar as coisas na infância à espera que a verdade desabroche com a maturidade. A inveja que hoje me saltou à frente não era feia nem era má. Não deu uma gargalhada desconcertante nem desapareceu depois. Pelo contrário: sorriu-me e acompanhou-me no meu caminho, fazendo-me ver que só de mim depende aproveitar os pequenos prazeres diários, juntar todos os retalhos e fazer uma manta quente e colorida de felicidade e bem-estar. Que está nas minhas mãos passar uma tarde gloriosa a comprar um par de sapatos que usarei apenas uma vez e a aborrecer-me ou a ter momentos de prazer cálido. E ao deixar-me à porta de casa disse-me, piscando o olho, que num dia distante de sol e vento também tinha surpreendido o homem da esplanada.

1 Comments:

  • entrada em grande

    keep up the good work

    estarei atento aos sapatos

    By Blogger melena, at 9:32 AM  

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