"A minha pátria é a língua portuguesa"

Thursday, December 06, 2007

Trópicos de Personalidade

O internamento num hospital tende inexoravelmente à anulação do indivíduo como tal. Uma pessoa internada não é a senhora Maria nem o senhor Manuel. Existe uma tendência desagradavelmente comum em considerar as pessoas como casos ou como a cama 16 ou 20. Tudo se torna tão cinzento, ordinário e indistinto como se as pessoas não tivessem uma vida própria e uma personalidade marcadamente sua. São abordados quase como um livro de estudo que se lê, relê, sublinha a marcadores fluorescentes, cola post-its e rabisca apontamentos à margem.
Daí que tenha ficado agradavelmente surpreendida hoje quando vi na mesa-de-cabeceira de um doente o livro Equador de Miguel Sousa Tavares. Em primeiro lugar porque também já li o livro, gostei e não considero, de todo, que seja literatura de aeroporto, como supostamente já foi classificado…
Por outro lado, aquele livro revela um colorido de personalidade que se destaca. Uma afirmação do ego. Uma recusa em ser rotulado e indistinguível.
Num quarto em que tudo é impessoal, em que não há nada de notável e que é partilhado por mais dois doentes, o Equador fazia a diferença entre estar sozinho a meditar na sua e na desgraça alheia e viver bocadinhos da vida que outros imaginaram. Fazia a diferença entre o cinzento monótono e o sol brilhante e abrasador dos trópicos.

4 Comments:

  • "-O seu BI." Reservadamente, ela estende a mão direita, entregando ao individuo de aspecto sorumbático e com ar de quem acordou com os pés do lado de fora do beliche (menino da mamã que nunca fez nada em casa e se recusa a de lá sair) aquele rectângulo de cor pastel que nos resume enquanto cidadãos de uma repúlica que alguns gostariam de ver anexada à Espanha. "-O seu nº de contribuinte." Jorram de suas alvas mãos incontáveis cartões, por um tempo que ela nem procurou quantificar para não se consciencializar de que perdera uma tarde a prestar contas perante entidades que a consideram mera quantia de dinheiro a entrar nos cofres do estado. Por dois segundos perdera o seu último autocarro para casa. Teria que apanhar o taxi.
    -Malditos!!!(a minha filha que tá em Barcelona não perde tanto tempo como eu nestas coisas...).
    Enfadada, gira a chave na porta:
    o seu marido está, invariavelmente, sentado no sofá. (Este traste não me ajuda em nada...não sei como passados vinte anos e outros tantos de namoro ainda tou com ele).Dirige-se ao quarto e seus olhos quedam-se num livro de Miguel Sousa Tavares que lhe tinham dado nos anos. Lê uma ou duas páginas, não mais. Levanta-se repentinamente da cama e liga o rádio. ("Encosta-te a mim...")Abre a janela e o cheiro a sardinhas assadas do almoço ainda persiste naquele bairro mal arejado e revestido a manjericos. E pensa...é bom ser português.

    By Anonymous Anonymous, at 9:15 PM  

  • "Tenho medo que a liberdade se torne um vício" Miguel S.T.

    Enquanto houver pessoas que, apesar de momentanea ou perenemente presas a uma cama, procurem trazer um arco-iris a uma vida que tantos outros com problemas menores julgam ser pintada a tons de preto e cinza (mesmo o branco não consta da paleta deles), seja a liberdade um vício, seja eu internada com uma "over-portanto-dose" desse vício injectada nas veias. Eu não me importo de o ser. E decerto muitos mais também não se importatão.

    By Anonymous Anonymous, at 9:21 PM  

  • assim tá bem

    pena é não apareceres noutros sitios

    By Blogger divagador, at 10:10 AM  

  • Porque nem tudo é doença dentro de um hospital. Porque lidamos com Pessoas (com P maiúsculo)

    ***

    By Blogger -- Ana --, at 11:45 PM  

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