"A minha pátria é a língua portuguesa"

Tuesday, December 25, 2007

Conto de Natal

Encontrei há dias entre os meus papéis umas folhas manuscritas, que a humidade já torna imprecisas as palavras escritas na frente e no verso. A letra, reconheço-a como minha, apesar de ser muito diferente da actual. Trata-se de um conto de Natal que escrevi para um trabalho da escola quando tinha 12 anos. Decidi colocá-lo aqui, resistindo a todos os impulsos de alterar palavras ou riscar frases, como evocação do meu ego mais jovem e como recordação de uma pureza e inocência que deixei caídas algures enquanto crescia. Foi esta também a maneira que encontrei de desejar um Feliz Natal a todos os que, de forma mais ou menos regular, dão aqui uma espreitadela.

Há alguns anos atrás havia uma pequena aldeia que se situava a alguns quilómetros da cidade Bela-Vista. Na pequena aldeia, todos eram felizes: não havia pobres, o ódio, a inveja e o egoísmo não existiam e todos se davam bem uns com os outros. Eu tinha muito orgulho em viver lá. Nesta altura tinha 7 anos. Era uma criança e como todas as outras gostava do Natal. O Natal da minha terra era o mais lindo do mundo. Todos os anos, a 6 de Novembro, reuniam-se todos os adultos homens. Nessa reunião combinava-se quem seria, naquele ano, o Pai Natal que iria satisfazer os pedidos das vinte crianças da aldeia. No dia seguinte, os mais novos escreviam a sua carta com a letra mais bonita que tinham. Depois deixavam-na no ligar onde, todos os anos, se fazia a dita reunião. Assim o misterioso Pai Natal teria até o dia 24 de Dezembro para aceder aos caprichos dos petizes.
Pelo dia 8 de Dezembro, começavam os preparativos para o Natal. Todas as casas eram enfeitadas com azevinhos, laços, fitas e, claro, era obrigatório o pinheiro e o presépio.
Na véspera de Natal a azáfama reinava em toda a aldeia. Batiam-se os últimos bolos e preparavam-se as doces filhós. Depois às 9 horas todos os habitantes reuniam-se. Este ritual fazia com que se intensificassem os laços de amor e partilha que havia entre nós. Este era o verdadeiro sentido do Natal: o amor, a partilha, a amizade e a fraternidade. E assim, Jesus nascia no coração de cada um de nós de maneira especial.
Perto da meia-noite, dirigíamo-nos para a igreja. Lá louvávamos o nosso Deus, dávamos graças pelas suas maravilhas e comemorávamos o nascimento do Redentor.
Depois regressávamos a casa e íamo-nos deitar enquanto o Pai Natal distribuía as prendas. Lembro-me de uma vez ouvir passos na minha casa e fui espreitar. Era o Pai Natal que curiosamente era o meu pai. Fiquei muito orgulhosa mas guardei segredo pois era proibido saber quem era o Pai Natal.
No último dia do ano íamos à igreja agradecer mais um ano passado e pedíamos que os próximos fossem, pelo menos, iguais. Depois fazíamos uma fogueira e íamos para perto dela. Este ritual tinha uma razão muito simples: no último dia do ano à meia-noite passava sempre uma estrela cadente. Nós não sabíamos qual a sua origem, mas o certo é que pedíamos um desejo: que o ano novo fosse tão feliz como o que tinha passado.
Os anos foram passando sempre festejados com a mesma alegria e amor. Mas no ano em que festejei os meus 15 anos, a misteriosa estrela não passou e portanto não fizemos o pedido. A partir daí aconteceram coisas estranhas: as pessoas deixaram de se cumprimentar, morreram algumas pessoas sem que se conhecesse razão aparente e muitos dos habitantes passaram a odiar-se. Muitas famílias, entre elas a minha, partiram para a cidade Bela-Vista. No princípio pensei que seria bom. Pensamentos de adolescente…
Agora com os meus 45 anos (quando despontam os primeiros cabelos brancos) reconheço a asneira que fizemos. Nunca mais vi os meus vizinhos e o Natal nunca mais foi o que era. Aqui na cidade, o Pai Natal não desce pela chaminé, nem pelo elevador ou pelas escadas de incêndio dos prédios. As crianças não acreditam no Pai Natal e chateiam os pais para lhes comprarem os brinquedos da moda. O Natal deixou de ser a festa do amor e da partilha e passou a ser a festa do consumismo. O meu coração parte-se ao ver os mendigos a pedirem esmola aos que passam carregados de embrulhos. Agora tenho a certeza que Jesus não nasce no coração dessas pessoas. Agora Jesus, que devia ser o grande motivo do Natal, é substituído pelas prendas e pelo prazer de consumir. Tenho saudades da ceia de Natal, tenho saudades da estrela cadente, mas de tudo isso só me resta a memória
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Thursday, December 13, 2007

Palavras Pedras

Quem cultiva o hábito de escrever conhece aquela necessidade urgente de gravar em palavras um pensamento que irrompe subitamente. Conhece a sensação de escrever febrilmente como quem se liberta de um peso opressivo, como se numa loucura nos tomasse e obrigasse a gravar para a eternidade um estado de espírito volúvel.
A escrita é uma catarse. A comunicação é uma forma de libertação poderosa. Mesmo aqueles exercícios de fermentação argumentativa, de defesa de opinião que escrevemos sem nenhuma espécie de pretensiosismo, são formas de comunicação connosco próprios. Num futuro mais ou menos próximo estaremos a ler o que se escreveu anteriormente e pensar o que poderia ser mais desenvolvido ou aquilo que organicamente se alterou em nós para analisarmos as questões sobre outros prismas.
O pensamento e a comunicação estão dependentes da palavra. Pensamos por palavras, falamos por palavras, escrevemos por palavras. A dificuldade consiste em tropeçamos nelas como se de pedras se tratassem. Porque não são suficientemente claras para aquilo que pretendemos transmitir ou porque aquilo que pensamos e, sobretudo, sentimos não encontra nelas perfeita tradução. O eu que pensa e sente está desconectado do eu que escreve como se fossem duas entidades distintas.
Existem textos que saem límpidos, fluidos, que nos surgem quase que por magia no espírito em momentos de abstracção. As palavras bailam à nossa frente e basta dispô-las coerentemente. Outras vezes, são textos mil vezes escritos e reescritos, numa busca obsessiva daquilo que julgamos ser a perfeição. A frustração é enorme: sente-se uma necessidade urgente de comunicação, mas as palavras aprisionam-nos. Daqui resultam textos sofridos, que levam muito tempo até tomarem a forma pretendida, ou textos incompletos, insuficientes e mal desenvolvidos.
Contudo, apesar da mediocridade, a comunicação é uma necessidade tão básica, que devemos libertar as palavras que nos pesam. Gritá-las ao vento, desenhá-las efemeramente na areia, sussurrá-las baixinho ou escrevê-las numa folha que se rasga ou esconde no fundo de uma gaveta.

Thursday, December 06, 2007

Trópicos de Personalidade

O internamento num hospital tende inexoravelmente à anulação do indivíduo como tal. Uma pessoa internada não é a senhora Maria nem o senhor Manuel. Existe uma tendência desagradavelmente comum em considerar as pessoas como casos ou como a cama 16 ou 20. Tudo se torna tão cinzento, ordinário e indistinto como se as pessoas não tivessem uma vida própria e uma personalidade marcadamente sua. São abordados quase como um livro de estudo que se lê, relê, sublinha a marcadores fluorescentes, cola post-its e rabisca apontamentos à margem.
Daí que tenha ficado agradavelmente surpreendida hoje quando vi na mesa-de-cabeceira de um doente o livro Equador de Miguel Sousa Tavares. Em primeiro lugar porque também já li o livro, gostei e não considero, de todo, que seja literatura de aeroporto, como supostamente já foi classificado…
Por outro lado, aquele livro revela um colorido de personalidade que se destaca. Uma afirmação do ego. Uma recusa em ser rotulado e indistinguível.
Num quarto em que tudo é impessoal, em que não há nada de notável e que é partilhado por mais dois doentes, o Equador fazia a diferença entre estar sozinho a meditar na sua e na desgraça alheia e viver bocadinhos da vida que outros imaginaram. Fazia a diferença entre o cinzento monótono e o sol brilhante e abrasador dos trópicos.