Fuga Apressada
Aeroportos e estações de comboio: entre a correria desenfreada das chegadas e partidas existe outra agitação latente perceptível a quem se consegue distanciar de toda e qualquer emoção vivida em tais lugares. Quem não está mergulhado na melancolia da partida, egocentricamente envolvido na antecipada dor da saudade ou excitado pelo reencontro com os amados ausentes consegue adivinhar, ou pelo menos suspeitar, o que sentem ou outros.
É este o exercício que proponho. Imaginemos uma estação de comboio como tantas outras. Uma luz vaga que ilumina a noite ligeiramente rósea e carregada. Várias linhas, um cheiro metalizado, um bar de aspecto um tudo-nada suspeito. De momento não está muita gente: um par de namorados que se beija como se não houvesse amanhã, um homem de meia idade e aspecto soturno que pensa no trabalho que lhe pesa na pasta e na consciência, um casal idoso um pouco atordoado e perdido, dois rapazes com mochilas grandes e o aspecto descuidado de quem já atravessou meia Europa. De todas estas personagens tipo, eis que surge uma que se destaca das restantes. Ninguém dá por ela e para ela o facto de os outros serem desconhecidos é reconfortante. Se a imaginarmos sem a maquilhagem abusiva, sem o nervosismo no passo e sem a inquietude com que olha à volta, podemos ver uma mulher ainda jovem, na casa dos 25 anos, a quem a vida já maltratou repetidas vezes. E digo a vida porque lhe desconheço os antecedentes e como tal resta-me canalizar as culpas para uma identidade indefinida.
Mas o que ainda não foi dito é que esta mulher tem uma nódoa negra na maçã do rosto e um rasto de lágrimas ainda visível. Traz na mão um saco pequeno de roupa urgentemente empacotada. As mãos tremem-lhe quando abre a bolsa a tiracolo. Remexe e tira uma nota com que paga uma sandes. O empregado recebe o dinheiro e devolve-lhe o troco indiferente. Ela é apenas mais uma das tantas que por ali já passaram nas mesmas condições.
Não come a sandes: devora-a. Entra nos lavabos onde atira água gelada ao rosto na esperança de apagar o que é óbvio. Uma voz impessoal anunciando a chegada do comboio põe-lhe um brilho ansioso no olhar. Embarca sem olhar para trás.
Suspeitamos de que foge. Imaginamos a mão que lhe marcou o rosto e as lágrimas que chorou de raiva contra os outros e contra si própria. Mas o que podemos saber com toda a certeza é que esta mulher foge da própria vida que lhe tem sido tão negra como a noite em que agora mergulha dentro de um comboio para parte indefinida. Antes de fechar os olhos e encostar a cabeça ao vidro reza para que a estação terminal lhe traga um novo acto na sua própria tragicomédia.
É este o exercício que proponho. Imaginemos uma estação de comboio como tantas outras. Uma luz vaga que ilumina a noite ligeiramente rósea e carregada. Várias linhas, um cheiro metalizado, um bar de aspecto um tudo-nada suspeito. De momento não está muita gente: um par de namorados que se beija como se não houvesse amanhã, um homem de meia idade e aspecto soturno que pensa no trabalho que lhe pesa na pasta e na consciência, um casal idoso um pouco atordoado e perdido, dois rapazes com mochilas grandes e o aspecto descuidado de quem já atravessou meia Europa. De todas estas personagens tipo, eis que surge uma que se destaca das restantes. Ninguém dá por ela e para ela o facto de os outros serem desconhecidos é reconfortante. Se a imaginarmos sem a maquilhagem abusiva, sem o nervosismo no passo e sem a inquietude com que olha à volta, podemos ver uma mulher ainda jovem, na casa dos 25 anos, a quem a vida já maltratou repetidas vezes. E digo a vida porque lhe desconheço os antecedentes e como tal resta-me canalizar as culpas para uma identidade indefinida.
Mas o que ainda não foi dito é que esta mulher tem uma nódoa negra na maçã do rosto e um rasto de lágrimas ainda visível. Traz na mão um saco pequeno de roupa urgentemente empacotada. As mãos tremem-lhe quando abre a bolsa a tiracolo. Remexe e tira uma nota com que paga uma sandes. O empregado recebe o dinheiro e devolve-lhe o troco indiferente. Ela é apenas mais uma das tantas que por ali já passaram nas mesmas condições.
Não come a sandes: devora-a. Entra nos lavabos onde atira água gelada ao rosto na esperança de apagar o que é óbvio. Uma voz impessoal anunciando a chegada do comboio põe-lhe um brilho ansioso no olhar. Embarca sem olhar para trás.
Suspeitamos de que foge. Imaginamos a mão que lhe marcou o rosto e as lágrimas que chorou de raiva contra os outros e contra si própria. Mas o que podemos saber com toda a certeza é que esta mulher foge da própria vida que lhe tem sido tão negra como a noite em que agora mergulha dentro de um comboio para parte indefinida. Antes de fechar os olhos e encostar a cabeça ao vidro reza para que a estação terminal lhe traga um novo acto na sua própria tragicomédia.