"A minha pátria é a língua portuguesa"

Sunday, October 21, 2007

Fuga Apressada

Aeroportos e estações de comboio: entre a correria desenfreada das chegadas e partidas existe outra agitação latente perceptível a quem se consegue distanciar de toda e qualquer emoção vivida em tais lugares. Quem não está mergulhado na melancolia da partida, egocentricamente envolvido na antecipada dor da saudade ou excitado pelo reencontro com os amados ausentes consegue adivinhar, ou pelo menos suspeitar, o que sentem ou outros.
É este o exercício que proponho. Imaginemos uma estação de comboio como tantas outras. Uma luz vaga que ilumina a noite ligeiramente rósea e carregada. Várias linhas, um cheiro metalizado, um bar de aspecto um tudo-nada suspeito. De momento não está muita gente: um par de namorados que se beija como se não houvesse amanhã, um homem de meia idade e aspecto soturno que pensa no trabalho que lhe pesa na pasta e na consciência, um casal idoso um pouco atordoado e perdido, dois rapazes com mochilas grandes e o aspecto descuidado de quem já atravessou meia Europa. De todas estas personagens tipo, eis que surge uma que se destaca das restantes. Ninguém dá por ela e para ela o facto de os outros serem desconhecidos é reconfortante. Se a imaginarmos sem a maquilhagem abusiva, sem o nervosismo no passo e sem a inquietude com que olha à volta, podemos ver uma mulher ainda jovem, na casa dos 25 anos, a quem a vida já maltratou repetidas vezes. E digo a vida porque lhe desconheço os antecedentes e como tal resta-me canalizar as culpas para uma identidade indefinida.
Mas o que ainda não foi dito é que esta mulher tem uma nódoa negra na maçã do rosto e um rasto de lágrimas ainda visível. Traz na mão um saco pequeno de roupa urgentemente empacotada. As mãos tremem-lhe quando abre a bolsa a tiracolo. Remexe e tira uma nota com que paga uma sandes. O empregado recebe o dinheiro e devolve-lhe o troco indiferente. Ela é apenas mais uma das tantas que por ali já passaram nas mesmas condições.
Não come a sandes: devora-a. Entra nos lavabos onde atira água gelada ao rosto na esperança de apagar o que é óbvio. Uma voz impessoal anunciando a chegada do comboio põe-lhe um brilho ansioso no olhar. Embarca sem olhar para trás.
Suspeitamos de que foge. Imaginamos a mão que lhe marcou o rosto e as lágrimas que chorou de raiva contra os outros e contra si própria. Mas o que podemos saber com toda a certeza é que esta mulher foge da própria vida que lhe tem sido tão negra como a noite em que agora mergulha dentro de um comboio para parte indefinida. Antes de fechar os olhos e encostar a cabeça ao vidro reza para que a estação terminal lhe traga um novo acto na sua própria tragicomédia.

Tuesday, October 02, 2007

O Velho do Penedo

Imagine-se um dia de sol radioso, um céu azul que nenhuma nuvem mancha e uma negra andorinha que ocasionalmente rasga o ar. Imagine-se uma árvore frondosa que oferece sombra e um banco convidativo.
Um homem velho está sentado, debruçado sobre uma fiel bengala, os olhos fechados. Passo e não sei se está acordado, se dorme ou se em sonolência vaga revive dias passados. Junto do velho não existe numa criança que lhe anime com a promessa da vida em renovação. Nem pombos que lhe debiquem as migalhas da solidão.
O jardim chama-se Penedo da Saudade. Não consigo imaginar sítio mais apropriado para o velho remoer a memória de dias passados e a saudade daquilo que não viveu. Ponho-me a pensar na vida dele: se vive com os filhos, se tem netos, se é viúvo, que empregos teve, as loucuras da sua juventude, as namoradas que teve ou que gostava de ter tido, os hábitos, as manias.
Pese o facto de o envelhecimento ser uma realidade inalienável da vida, a sociedade actual não se concilia com ela. Há horror a cada ruga. O natural passar dos anos é pseudo-mascarado por tratamentos de beleza ridículos. Cada idoso é visto como um peso insuportável. Financeiro e emocional. A sociedade esqueceu o respeito que as sociedades tribais devotam aos seus anciãos, como a fonte do saber de experiências feito.
A solidão envenena-lhe os dias. Ele abre os olhos, sacode os fantasmas e levanta-se a custo. Encaminha-se para casa? Espera-lo-á em algo mais que uma televisão, ópio dos sós? Anda devagar, concentrando-se em cada passo. E apesar do passo magoado, ele seria bem feliz se apenas lhe doessem as articulações.
Texto dedicado a Joana Salgado por dar a ideia para o título e por me mandar reagir quando tenho as ideias enevoadas.