"A minha pátria é a língua portuguesa"

Wednesday, March 29, 2006

Bailado Cósmico

Do alto do seu majestoso trono, Deus observa, com não disfarçado orgulho, a dança ritmada e bem coordenada dos astros. Foi Ele quem criou a coreografia e ensaiou os bailarinos. Agora repousa e assiste ao espectáculo da sua autoria. Se o criou para seu próprio entretenimento ou para gáudio de outros, não o podemos dizer. Mas o seu sorriso e o bater ritmado do seu pé, mostra que o bailado prossegue de forma perfeita e ao compasso que ele idealizou, durante aqueles longos momentos de solidão em que os seus bailarinos não passavam de pedaços inarticulados de matéria. Por longos tempos meditou e explicou o seu projecto aos Anjos. Estes entreolhavam-se, interrogando-se quem seriam os bailarinos. Sim, porque eles são os membros da orquestra: harpas, violinos, trombetas. E então, Deus tirou de dentro da sua túnica um ponto de densidade infinita e fazendo-o explodir criou a matéria, a energia e o tempo.
Não nos afastemos do espectáculo: é uma dança complexa, em que os intervenientes são díspares. Por requintes de artista, Deus decidiu que os astros cintilantes ficam ao centro enquanto os bailarinos menores rodam à volta das estrelas e à volta de si próprios. À volta de alguns destes bailarinos menores, vulgo planetas, Deus colocou ainda outros mais pequenos, os satélites. E como se ainda não bastasse, irrompem entre esta sucessão hierárquica os cometas.
Mas chegamos a uma parte peculiar do espectáculo, e Deus endireita-se no trono para melhor apreciar. É um momento relativamente raro, projectado cuidadosamente. É o momento em que o satélite Lua se interpõe entre a estrela Sol e o planeta Terra. Como resultado, o brilho do Sol, que Deus sabe ser tão amado na Terra, é momentaneamente cortado ou reduzido: dá-se o eclipse solar. Os passos saíram executados na perfeição e Deus não se pode coibir de aplaudir de pé, não obstante os olhares reprovadores dos Anjos.
Volta a sentar-se e a dança prossegue constante e imutável, coordenada e perfeita. Abstraindo-se um pouco do espectáculo, Deus sorri para si próprio e pensa nos Homens, que por números e leis de Astrofísica conseguiram desvendar grande parte do seu bailado, calculando com precisão quando é que aqueles momentos do eclipse ocorrem, e onde é possível observá-lo melhor da Terra.
Sentir-se-á aborrecido com isso? Diríamos que não. Afinal o Universo é infinito e portanto Deus pensa que o conhecimento total daquilo que não acaba é uma pretensão que vai contra as leis elementares da lógica. E é com enorme gozo que recorda o rosto atónito do Anjos quando lhes mostrou o ponto de densidade infinita que explodiu e o rosto dos Homens quando se aperceberam da formação do Universo a partir daquilo que decidiram chamar por “Big Bang”.

Sunday, March 26, 2006

Hábitos de Leitura

Está hoje na página do Sapo (www.sapo.pt) um inquérito sobre os hábitos de leitura dos portugueses. A pergunta é “Leu algum livro o mês passado?”. No momento em que escrevo este post, as votações iam a 60% de respostas negativas (3840 dos inquiridos) e 40% de respostas afirmativas (2550 dos inquiridos).
Este inquérito, apesar de informal, só vem demonstrar aquilo que já todos sabemos: que em Portugal se lê pouco. Por outro lado, o preço dos livros, mesmo em promoções e feiras, não é acessível à bolsa da maioria das pessoas. Grande parte dos livros rodam os 20€ e como é óbvio, gastar a referida soma no referido produto é para muita gente um desperdício de dinheiro. Contudo, na minha opinião, o facto de se ler pouco no nosso país extravasa os motivos económicos. É uma questão de mentalidade e de aprendizagem.
Considero-me uma pessoa que, relativamente à média, lê bastante. No verão, se saio sozinha para a praia faço-me sempre acompanhar por um livro, leio antes de adormecer e se estou em casa sem nada de urgente para fazer. No verão passado lembro-me de estar na praia e reparar num grupo de miúdas à distância de uns metros de mim que me observavam curiosas enquanto eu lia O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Também noutra ocasião estava na praia deitada naquele estado semi-consciente, que antecede uma soneca, e ouvi uma mulher comentar com as amigas que gostava de gostar de ler, mas que não tinha paciência…
E porque gosto eu de ler? Porque me incutiram o gosto quando na infância estava receptiva a este tipo de aprendizagem. Ofereciam-me livros, via os meus pais a ler e ensinaram-me que ler enriquece o leitor.
Na escola, os professores tentam despertar o gosto pela leitura, nomeadamente através de um trabalho no âmbito da disciplina de Língua Portuguesa, a que chamam “Leitura Recreativa” e que consiste na selecção, leitura e apresentação de um livro. Pelo menos quando eu andava no 5º e 6º ano era assim.
É um facto que os livros são dispendiosos. Mas para quem tem possibilidade de os comprar, um livro é um bom investimento: é um investimento na cultura geral, no conhecimento da língua e no crescimento da própria pessoa. Para quem não os pode comprar existem as Bibliotecas Públicas e os livros emprestados pelos amigos e conhecidos. Se bem que reconheço que se estabelecem relações especiais com alguns livros, o que nos faz quer ter um só nosso.
Para os interessados, aqui está uma breve lista de livros que me marcaram e que recomendo vivamente:
· A Sombra do Vento (Carlos Ruiz Záfon)
· Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez)
· O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde)
· Equador (Miguel Sousa Tavares)
· A Filha do Capitão (José Rodrigues dos Santos)
· Código da Vinci (Dan Brown)
· O Nome da Rosa (Umberto Eco)
· 1984 (George Orwell)
· O Senhor dos Anéis (J. R. R. Tolkien)
· A Trança de Inês (Rosa Lobato de Faria)
· O Crime do Padre Amaro (Eça de Queiroz)
· As Intermitências da Morte (José Saramago)

Thursday, March 23, 2006

Memórias

Foi com enorme tristeza que tomei conhecimento do programa televisivo "Circo das Celebridades". Mal começou o genérico, tratei de mudar rapidamente de canal... não pelo facto de não gostar de circos. Na verdade, quando era criança adorava-os e ainda continuam a exercer em mim um certo fascínio. A vida errante, os animais perigosos, as lantejoulas brilhantes, as bailarinhas que desafiam as leis da Física. Mudei de canal porque tenho a certeza que este circo tem palhaços a mais. E depois porque animais domesticados só mesmo burros... com o devido respeito aos comediantes e aos dóceis animais.

Decidi escrever este post para mostrar aos meus leitores como desde há um ano e picos a televisão em Portugal tem mudado muito pouco. E sendo a televisão o reflexo daquilo que o povo gosta, consequentemente escrevo este post com a triste certeza de que a sociedade continua a mesma: fútil, inculta e alienada.

Passo a explicar: os meus primeiros passos na blogesfera foram dados a propósito de um reality-show. Um querido amigo publicou um texto meu no seu blog (
www.acerbo.blogspot.com), no dia 28 de Novembro de 2004. Para mostrar o ciclo vicioso em que a televisão em Portugal parece mergulhada, aqui está o texto:

Mediocridades Elevadas à 5ª

Agora que alguns começavam a respirar de alívio pelo facto da televisão portuguesa estar, aparentemente, descontaminada, surge uma nova agressão: o reality-show “Quinta das Celebridades”, a nova aposta da TVI na poluição televisiva.
De formato sueco e experimentado em França, Itália, Alemanha, Espanha e EUA (onde era visto por uma média de 8 milhões de espectadores), “Quinta das Celebridades” foi agora adaptado a Portugal. Neste novo concurso pretende-se que 12 concorrentes, as supostas celebridades, fiquem confinados dentro de uma herdade durante 3 meses, sujeitando-se a viver, grosso modo, segundo os moldes do final do século XIX. Como seria de esperar, não falta o toque orwelliano, o que significa que para além de estarem privadas de muitos confortos, as celebridades estão a ser vigiadas 24 horas por dia. Mas nem tudo são desvantagens. Para obter um bom elenco na “Novela da Vida Rural”, a Endemol dispôs-se a pagar regiamente: entre 5 mil e 25 mil euros semanais, consoante a celebridade.
Agora vejamos: se existem pessoas no mundo que são obrigadas a subsistir com apenas 2 euros diários, será justo que pseudo-estrelas recebam contas exorbitantes lá por estarem a mungir vacas e plantar couves para um país inteiro ver?
Por outro lado, o próprio nome do programa induz num grave erro. De facto, serão os concorrentes verdadeiras vedetas, personalidades com obra feita ou pessoas que alcançaram alguma notoriedade por motivos um pouco dúbios? Celebridades porque foram acusadas de tráfico de jóias, ofereceram um espectáculo deprimente de pontapés durante um jogo de futebol, protagonizaram filmes pornográficos ou apresentaram um programa televisivo nuas? Na minha opinião, só o facto destas pessoas serem consideradas célebres mostra quão baixo é o nível cultural da nossa sociedade. Não é celebridade aquele que se destaca nos campos literários, da música ou da política, mas sim aqueles que fazem as delícias das massas, são veteranos nas revistas “cor-de-rosa” ou já surgiram por entre as luzes da ribalta social.
Na minha óptica, é a atracção irresistível pelo exibicionismo, pelo “show off”, que leva estas celebridades decadentes a venderem a sua privacidade. É também impressionante a sua futilidade: que dizer de uma pessoa que perde meia hora do seu dia a filosofar se veste Armani ou Channel?
Apesar de tudo, é esse género de programas que ganha a guerra das audiências. Foi com “Quinta das Celebridades” que a TVI conseguiu pôr termo à liderança da SIC, liderança essa que já se arrastava há sete meses consecutivos. Em termos éticos, este facto levanta-nos outra questão. Apesar de os concorrentes não serem obrigados a participar, ao assinarem o contrato estão a tornar-se fantoches numa farsa improvisada e medíocre. Basta ver o que sucedeu a Zé Maria, vencedor da primeira edição de “Big Brother”, que sofre agora de graves perturbações, as quais, inclusive, já o levaram à beira do suicídio.
Quando o porta-voz da TVI afirmou: “Acreditamos (…) no gosto que os portugueses têm neste género de programas.” - sabia decerto que “Quinta das Celebridades” seria um sucesso. De facto, a maioria dos portugueses, com todos os problemas que o país e o mundo atravessam, parece estar apenas interessada em conhecer os pormenores sórdidos da vida quotidiana dos concorrentes e prefere viver nesta doce alienação.
Enfim, “não sei se diga, não sei se faça, não sei se pense”.

Thursday, March 02, 2006

Déjà vu

O Jornal dos Açores de ontem dava conta de mais um caso de abuso sexual de menores nos Açores. Uma história típica: uma família sem posses, um benfeitor rico a fazer visitas frequentes, os três filhos da família a terem nas mãos mais dinheiro do que a família lhes poderia proporcionar.
Desta vez não foi na Lagoa. Muda-se o palco de tão abjecta representação para Vila Franca do Campo.
O suposto abusador, que, juntamente com duas mulheres da família responsáveis pelos menores, já foi detido e vai ser presente ao Juiz de Instrução, é um médico de Lisboa, que sob o pretexto de ir assistir a congressos, e desde há um ano e meio, fazia frequentes visitas à família. Quem conhece S. Miguel não pode deixar de achar estranho que um médico que venha participar num congresso fique hospedado, não num hotel no centro de Ponta Delgada, mas sim numa casa em Vila Franca. Uma viagem de automóvel de Vila Franca a Ponta Delgada leva ainda algum tempo… a menos que o referido concelho acolha muitos congressos médicos, o que não me parece ser o caso.
Por outro lado, consta que os três menores, a partir de determinada altura, passaram a ir visitar o médico a Lisboa, não sendo excluída a hipótese de haver um rede de pedofilia, à qual se fossem juntar.
Sempre que histórias deste género aparecem na comunicação social, não posso deixar de me sentir profundamente enojada. Se o médico é realmente pedófilo, as suas acções são altamente condenáveis. Mas, e a mãe dos três menores, também não será culpada, ao compactuar silenciosamente com os abusos? Não será culpada por aceitar dinheiro em troca dos abusos sexuais de que os filhos eram, supostamente, vítimas? A minha opinião é que, tal como no badalado caso da “Garagem do Farfalha”, toda esta situação tem grotescas semelhanças com a prostituição: receber dinheiro em troca de favores sexuais.
Numa palavra: degradante.

Wednesday, March 01, 2006

Bú!

A experiência pessoal ensinou-me que aquele sentimento a que comummente chamamos inveja, o qual outros preferem catalogar como pecado mortal, pode assumir dois aspectos. Um deles é como um cancro que cresce insidiosa e silenciosamente corroendo a vítima, sugando-a segundo a segundo. Conduz inexoravelmente à maledicência e alimenta-se da ganância da própria vítima. É a forma mais maligna.
A outra é como uma criança traquina que sai detrás de um esconderijo e nos surpreende, dando uma gargalhada de puro gozo à custa da grotesca cara que a sua vitima fez. Serve para nos colocar à prova, para fazer-nos questionar o nosso modo de estar na vida, as nossas concepções, os nossos ideais.
Enquanto, dias atrás, andava na Baixa de Ponta Delgada à procura de uns sapatos de cerimónia, a inveja brincalhona meteu-se no meu caminho. Aproveitou-se, só encontro esta explicação, do facto de os meus nervos estarem em frangalhos por ter entrado em tanta sapataria, por ter repetido tanta vez que “calço 37” e por ter ouvido vários clichés como “este sapato faz uma toilette muito elegante”.
Quando por fim encontrei os sapatos ideais, ou pelo menos os que achei que me ficavam melhor, decidi voltar para casa e foi então que ela me fez “Bú!!!”. Na Avenida Marginal, enquanto caminhava e resmungava interiormente contra uma tarde perdida, voltei a cabeça, não sei porque instinto, para uma esplanada virada para o mar e reparei num homem jovem e de bom porte que lia descontraidamente o Equador diante de uma chávena de café.
A leitora que há em mim sabe perfeitamente que poucas coisas se assemelham ao prazer de ler um bom livro. E se a isso lhe juntarmos um lindo de dia de Inverno com sol e vento nas doses certas, então é mais do que um prazer: é um momento de felicidade.
Senti-me amargurada por ter passado uma tarde à procura de uns sapatos caros e com um salto assassino, que na melhor das hipóteses só me farão os pés num oito (as piores perspectivas são ir fazer uma visita ao Serviço de Ortopedia do Hospital), em vez de ter aproveitado a doçura inconstante do caprichoso clima açoriano. Daquele homem incógnito, do qual já nem recordo o rosto, invejei o momento em que saiu de casa com o livro debaixo do braço para ir ler. Invejei o mar de um azul indefinível que se estendia à sua frente. Invejei o vento que lhe folheava as páginas. Invejei o sol tímido que encarava o título da obra como um desafio à intensidade dos seus raios.
Porque me ensinaram em criança que a inveja é uma coisa feia, se anos depois venho a descobrir que nem sempre é assim? Parece ser esse um dos pilares da pedagogia: simplificar as coisas na infância à espera que a verdade desabroche com a maturidade. A inveja que hoje me saltou à frente não era feia nem era má. Não deu uma gargalhada desconcertante nem desapareceu depois. Pelo contrário: sorriu-me e acompanhou-me no meu caminho, fazendo-me ver que só de mim depende aproveitar os pequenos prazeres diários, juntar todos os retalhos e fazer uma manta quente e colorida de felicidade e bem-estar. Que está nas minhas mãos passar uma tarde gloriosa a comprar um par de sapatos que usarei apenas uma vez e a aborrecer-me ou a ter momentos de prazer cálido. E ao deixar-me à porta de casa disse-me, piscando o olho, que num dia distante de sol e vento também tinha surpreendido o homem da esplanada.