"A minha pátria é a língua portuguesa"

Monday, September 24, 2007

"Quando penso no mar, o mar regressa"

Não é impunemente que se nasce ilhéu. Vive-se para sempre escravo de uma ilusão de óptica que impõe fronteiras confortáveis ao nosso mundo. A perfeita fusão entre mar e céu, os tons de azul indefiníveis, o contorno impreciso e a própria inexistência física do horizonte fazem dele fonte de sentimentos ambíguos e quase antagónicos.
Se a frustração pela limitação geográfica que o próprio conceito de ilha encerra já pode ser mais facilmente mitigada, o mesmo não se poderá dizer do fascínio que o horizonte evoca. Em cada janela panorâmica procura-se a promessa da liberdade mais ampla, mais perfeita, mais impoluta. Não necessariamente uma fuga, mas o sentimento de paz interior decorrente da noção de infinito.
O ilhéu entende o mar como parte de si próprio. Revê-se no seu temperamento mutável, da doce serenidade à violência das tempestades, sente a sincronia entre o bater do seu coração e a respiração marítima, sabe como moldar pacientemente a rocha e compreende a inevitabilidade de morrer e renascer como as ondas da praia.

Saturday, September 08, 2007

O Caso do Peluche Cor-de-Rosa

O nome atribuído a este post bem podia ser o título de um policial ou, mais provavelmente, de uma novela. Isto porque o desaparecimento de Madeleine McCann saiu da esfera dos dramáticos e infelizmente frequentes desaparecimentos de crianças para se transformar num obsessivo folhetim global, situação para a qual contribui sobremaneira os esforços dos pais, na demanda desesperada pela filha desaparecida.
Foi posta em marcha uma campanha sem par. Saltando de país em país, até ao Vaticano chegaram os ecos do lamentável desaparecimento da Praia da Luz, para que um esforço ecuménico entre as duas Igrejas operasse o milagre de devolver a menina à família. Os meios de comunicação social, tubarões que farejam a milhas o mais ténue e fugaz rasto de sangue, trataram de iniciar uma cobertura exaustiva de caso. Quem eram os pais, onde se conheceram, a bizarra arquitectura da casa de Robert Murat, os directos à porta de Gerry e Kate McCann repetindo pela enésima vez notícias que nada tinham de novo. Os cartazes com a fotografia de Maddie surgiram da noite para o dia por todo o lado. Os olhos inocentes, como não podem deixar de ser os olhos de uma criança, veiculavam uma fria censura a quem não demonstrasse mais do que o pesar pelo seu desaparecimento e não assistisse em directo à saída dos McCann da igreja.
Com este caso, surgiram como cogumelos os Poirots de café e os Sherlock Holmes de esquina. Baseados em não sei qual obscuro e mal explicado pormenor ou especulação, cada qual diz de sua justiça. Creio que muito do interesse por este caso se deve à curiosidade geral pelo sórdido e pelo macabro. Até mesmo o repúdio pelos mais condenáveis actos se reveste de um fascínio enojado. Todos nós temos esta faceta que não gostamos de admitir: um lado negro, horripilante, violento e curioso por descobrir os limites do inominável. O modo como libertamos o pior que existe em nós faz a diferença entre o psicopata e o cidadão comum. Eu gosto de ler policiais e livros góticos. Há quem prefira os filmes ou jogos violentos. E existem os que seguem apaixonadamente os casos reais.
Flores, cartas de apoio, e-mails, pulseiras verde e amarelas, donativos, apelos de figuras públicas, velas, orações, aplausos aos pais, apertos de mão. Todas as demonstrações de apoio possíveis e imagináveis foram dirigidas ao casal na situação que todos supomos altamente penosa. Causa ou consequência dessas demonstrações de apoio, os media exploram o caso que pareceu estagnado mas que recebeu novo fôlego e portanto voltou a vender. Enfim, José Sócrates e os seus ministros precisavam de umas férias
Os últimos desenvolvimentos do caso, no que se refere ao facto de os McCann terem sido constituídos arguidos, vieram mostrar como a opinião pública é mais inconstante que um dia de Outono. Agora já não são os aplausos à saída da igreja mas os apupos à chegada das instalações da Polícia Judiciária.
Como podem dados incongruentes de diferentes noticiários e jornais, que anunciam desenvolvimentos iminentes sem que nada aconteça, detenções que ficaram por ocorrer e pistas que não fazem sentido nem para o mais falhado escritor de policiais, alterar drasticamente a opinião das pessoas? Vão surgir os “Sempre achei que aquilo era tudo uma farsa.” ou “Esta história está muito mal contada” ou ainda “Aquele aspecto muito condoído dos pais nunca me convenceu.”
Que poder subtil de lavagem cerebral têm os meios de comunicação social, para que poucas ideias saiam impolutas das nossas cabeças? Como pode um sector tão necessário à manutenção de uma democracia impor um padrão chocantemente uniforme de pensamento? Na minha opinião, uma das falhas mais graves na educação no nosso país é não potenciar o pensamento crítico. As minhas aulas de Introdução à Filosofia foram, salvo algumas excepções, uma desilusão. Era mais importante empinar Sócrates, Kant e Sartre do que debater um tema polémico. Em Português era quase pecado questionar a interpretação oficial de um texto e fazê-la de forma mais livre. Portanto não será assim tão estranho ter um país que formula as suas opiniões pela integração acrítica da informação caótica, para evitar denominá-la de desinformação.
Por ora, regresso à ficção do meu policial. Lá sou eu a correr contra o detective a ver quem chega primeiro ao assassino. Lamento dizer que mui raras vezes acerto, pelo que acho por bem não armar-me em Miss Marple no mundo real.