"A minha pátria é a língua portuguesa"

Saturday, April 26, 2008

As pessoas que pensam são perigosas

A memória é uma coisa curiosa. Ao procurar uma comparação que enriquecesse estas palavras, conclui que a memória é como a maré que devolve à praia maravilhas insuspeitas sob a forma de conchas e búzios, seixos rolados pelo tempo, madeiras de naufrágios passados e garrafas que preservam palavras há muito esquecidas.
Há dias, sem que nada o desencadeasse, lembrei-me de uma história que paira incerta entre os meus 6 e 9 anos. Foi-me contada pela minha professora da primária e, segundo os meus cálculos, refere-se a uma situação passada há 50 ou 60 anos.
Imaginemos uma criança que entra em conflito com os irmãos mais velhos. Essa criança é a minha professora. Como retaliação de uma travessura de que foi vítima, ela repete a viva voz um insulto aos irmãos. Estes, incomodados pela relativa dose de verdade ou pela insistência do insulto, mandam-na parar, sob ameaça de umas valentes palmadas.
Lembro-me que a minha professora contou a frase com que invectivava os irmãos, mas não consigo recordar qual era. O que recordo claramente, porque me revelou uma verdade que anos mais tarde consciencializei, foi o que respondeu à ameaça:
- Podem obrigar-me a calar mas vou continuar a dizer para dentro.
Tamanho atrevimento custou-lhe mesmo umas palmadas.
A verdade que mais tarde descobri, e que a minha professora usou por instinto, foi que nenhum pensamento pode ser silenciado pela coação física. Porque o pensamento não é feito da mesma matéria que a carne e como tal não sofre como ela. A voz interior, quando sabe que tem razão, é persistente. E por muito que as palavras o neguem, a Terra continua a girar em torno do Sol.

Friday, April 25, 2008

Liberdade

Nos meus cadernos de aluno
Na minha carteira e nas árvores
Nos areais e na neve
Escrevo o teu nome


Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas brancas
Pedra sangue papel cinza
Escrevo o teu nome

Sobre as imagens douradas
Nos estandartes guerreiros
Tal como na coroa dos reis
Escrevo o teu nome

Nas selvas e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco dos dias
Nas estações enlaçadas
Escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
No pântano sol alterado
No lago luar vivente
Escrevo o teu nome

Nos campos do horizonte
Sobre umas asas de pássaro
Sobre o moinho das sombras
Escrevo o teu nome


Em cada sopro de aurora
Na água do mar e nos barcos
Na serrania demente
Escrevo o teu nome

Na clara espuma das nuvens
Nos suores da tempestade
Na chuva insípida e espessa
Escrevo o teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos de muitas cores
Sobre a verdade da física
Escrevo o teu nome

Nas veredas bem despertas
Nos caminhos descerrados
Nas praças que se extravasam
Escrevo o teu nome

Na lâmpada que se alumia
Na lâmpada que se apaga
Nas minhas casas unidas
Escrevo o teu nome

No fruto partido em dois
do meu espelho e do meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo o teu nome

No meu cão guloso e meigo
Nas suas orelhas erguidas
Na sua pata sem jeito
Escrevo o teu nome

Na soleira desta porta
Nas coisas familiares
Na língua de puro fogo
Escrevo o teu nome


Em toda a carne que tive
Na fronte dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Muito acima do silêncio
Escrevo o teu nome

Nos meus refúgios desfeitos
Nos meus faróis aluídos
Nas paredes do meu tédio
Escrevo o teu nome

Na ausência sem desejo
Na solidão despojada
Na escadaria da morte
Escrevo o teu nome

Sobre a saúde refeita
Sobre o perigo dissipado
Sobre a esperança esquecida
Escrevo o teu nome

E pelo poder da palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Nasci para te nomear

Liberdade

Poema de Paul Éluard