"A minha pátria é a língua portuguesa"

Friday, November 24, 2006

O Alquimista

Se estivesse vivo, faria hoje 100 anos. A Pedra Filosofal que descobriu pode não tê-lo tornado imortal na verdadeira asserção da palavra, mas prolonga a sua existência através dos ecos do seu poema.
Refiro-me a António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, professor, pedagogo, investigador, poeta, mago das palavras, autor de um dos mais geniais poemas que conheço: “Pedra Filosofal”.
Um poema que exalta a capacidade humana de sonhar e como tal rasgar horizontes, quebrar barreiras, desafiar leis cósmicas e inventarmo-nos num novo tempo e num novo espaço. O sonho é a expansão da alma.

Pedra filosofal

"Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."

Saturday, November 18, 2006

Espelho Meu

Quando outro dia andava na baixa de Ponta Delgada dei com uma nova loja que, ao que parece, vende apenas embrulhos para prendas. São embrulhos elegantes, requintados e, suponho eu, de preço proporcional a isso mesmo. Como a quadra que se aproxima é propícia, pus-me a pensar como seria receber um presente com um embrulho assim mas em que o conteúdo fosse banal: seria uma desilusão de todo o tamanho. O inverso, isto é um embrulho apenas bonito e uma prenda fantástica, seria excelente. O primeiro impacto é fundamental, mas o que importa verdadeiramente é o que surge depois de um embrulho aberto.
Talvez seja uma comparação profundamente grosseira dizer que as pessoas são como prendas. Vivemos num mundo em que cada vez mais conta apenas o exterior, sendo que a verdadeira essência de cada um de nós é posta de parte. Mas não sejamos hipócritas: a imagem é a nossa primeira marca. É a maneira como surgimos aos outros, como somos evocados e como nos vemos todos os dias ao espelho. Daí que seja normal a preocupação que todos nós temos com a nossa aparência. O que já ultrapassa os limites do aceitável é a submissão a padrões de beleza absolutamente distorcidos.
A noção de beleza não é imutável e não é necessário ser um grande entendido de arte para o perceber. Basta ver umas pinturas de séculos passados para ver que o ideal de beleza se baseava em paradigmas mais curvilíneos. Certamente horrorizaria qualquer esteta renascentista saber que muita gente considera as manequins o supra-sumo da beleza. Ainda me lembro que a minha avó, certamente para me animar dos quilinhos que sempre tive a mais, me dizia que “a gordura é formosura.”
Sou da opinião que cada vez mais a noção generalizada de beleza feminina caminha para o descalabro, dado que impõe à mulher limites muito estreitos. Basta pensar na manequim brasileira Ana Carolina, de 21 anos que morreu há dias vítima de uma infecção generalizada, provocada pela anorexia. Tinha 1,74 de altura e pesava apenas 40 quilos. Alimentava-se de apenas maçãs e tomates, vomitando, por vezes, essa diminuta quantidade de comida.
O que faz uma pessoa fisicamente bonita? O rosto, sem dúvida. O facto de possuirmos pequenos detalhes que nos tornam distinguíveis no meio de tantos outros. As nossas bochechinhas. O contorno dos lábios. A forma das pestanas. A expressão dos olhos. A frescura do sorriso. Pobre daquele que ao espelho não encontra algo de belo. Não precisa de uma plástica, mas de injecções de auto-estima.
O que nos torna belos é o facto de sermos únicos. Se a isso somarmos as nossas qualidades, a nossa verdadeira essência, então somos prendas cujo embrulho não é uma fraude.