"A minha pátria é a língua portuguesa"

Tuesday, May 23, 2006

Como na Idade Média

I) Ainda na sequência da estreia mundial de O Código da Vinci, em Itália, uns senhores de extrema-direita convocaram uma queima de exemplares do livro que inspirou o referido filme. Na verdade, a iniciativa foi mais participada pelas pessoas que resolveram ir atirar tomates do que aqueles que estavam a recordar os bons velhos tempos em que o fogo era o meio de evitar a conspurcação da sociedade pela cultura e pelo pensamento cientifico, queimando os livros e condenando ao mesmo destino quem os escrevia e quem os lia. Foi de facto uma ideia muito interessante. Serviu ao menos para mostrar que numa Europa democrática e laica existem pessoas para as quais a palavra “tolerância” não consta do dicionário.
Estive a pensar e talvez também faça uma fogueirinha, até porque eu não gosto nada de livros. Estive a analisar a minha estante e decidi queimar Harry Potter, Saramago, Dan Brown e Virgílio Ferreira. Alguém quer participar?

II) Fiquei bastante surpreendida quando li no domingo um artigo no DN sobre cirurgias de reconstrução do hímen – himenoplastias. Um cirurgião plástico referia que as realiza maioritariamente a senhoras em grande estado de ansiedade, geralmente do interior, que iam casar com um homem, mas que entretanto romperam o compromisso. Uma das questões que colocam a esse cirurgião prende-se com o facto de ele estar a participar numa farsa.
A presidente da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas refere que nada pode restituir a dignidade e a honra a uma mulher que foi “desflorada”. O presidente da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Etnia Cigana refere que “Se a mulher não vier nas devidas condições é rejeitada”. Ponto número 1: uma esposa não é um produto de supermercado que se estiver estragado se devolve. Ponto número 2: parece-me mais que estas instituições contribuem para o não desenvolvimento da etnia cigana. Ponto número 3: não consigo compreender como no nosso tempo a dignidade de um ser humano possa estar associada à sua intimidade sexual. Casar virgem devia ser uma opção e não uma imposição social.De facto a evolução da espécie foi muito cruel com as mulheres: para além de as ter criado, em geral, mais vulneráveis fisicamente, ainda as tinha de dotar de uma estrutura anatómica exclusiva pela qual a sociedade as cataloga como dignas ou não.

Sunday, May 21, 2006

Ecce Homo

Na cobertura das festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, vi ontem à noite uma entrevista a uma senhora à qual estavam a ser prestados serviços de enfermagem, visto que tinha dado a volta ao campo de São Francisco de joelhos, na sequência de uma promessa. A senhora apresentava os joelhos e o dorso dos pés em ferida, qual representação de Cristo crucificado.
Para os que não conhecem os ritos que caracterizam este culto, os fiéis em momentos de angústia, sofrimento e aflição, fazem promessas, promessas essas pagas de diversas formas quando a graça pedida é concedida. Há quem ofereça jóias ou capas de veludo vermelho bordadas a ouro, engrossando assim o já riquíssimo tesouro da imagem. Outros prometem sacrifícios menos materiais, como ir descalço na procissão, carregar círios do seu peso ou altura, ou das medidas da pessoa para a qual pediram a protecção divina. Finalmente há quem prometa dar a volta ao Campo de São Francisco de joelhos, sobre o basalto da calçada. Este ano o tempo esteve sombrio, mas é frequente estar calor, pelo que o sacrifício ainda se torna mais violento. Algumas pessoas ficam em tão mau estado que são encaminhadas para o serviço de Cirurgia.
As autoridades religiosas manifestam-se contra esta expressão de fé e gratidão tão dolorosa, mas ao que parece, o número de pessoas que optam por este tipo de promessas não diminui.
Só quem assiste às festas sabe a imensidão de gente que adere às procissões. É um culto com mais de 300 anos que não morre apesar da crise religiosa que os padres tanto apregoam, sendo que estas são as maiores festas religiosas de Portugal. E porque será? Talvez porque a imagem represente mais compaixão, compreensão e tolerância para com as fraquezas humanas do que alguns dos clérigos, que por vezes mais não fazem do que censurar e ameaçar com o fogo perpétuo do Inferno as almas simples.

Thursday, May 18, 2006

A Polémica da Vinci

Depois de ter vendido milhares de cópias, de ter estado meses seguidos nos tops e de ter ascendido à categoria de best-seller, estreia hoje a adaptação cinematográfica de O Código da Vinci, de Dan Brown.
Ainda antes de ter estreado, o filme já levanta uma enorme polémica ou não estaríamos a falar da adaptação de um livro controverso, o que por si só é garantia de salas de cinema esgotadas. Por todo o mundo têm surgido diversas reacções ao filme, reacções essas que têm o mesmo denominador comum: a intolerância. Só para citar os casos mais caricatos, no Brasil foi interposta uma providência cautelar ao filme e na Índia a cabeça de Dan Brown anda a prémio (isto é que são bons católicos…). Suponho que não valha a pena falar da reacção do Vaticano e da Opus Dei, porque isso seria “chover no molhado”.
Foquemo-nos no livro, que é a origem de toda a problemática. Para os que ainda não leram, O Código da Vinci é um triller histórico que tem por base a hipotética relação marital entre Jesus Cristo e Maria Madalena. É um livro escrito de maneira inteligente, que origina uma leitura compulsiva e viciante. Não é de modo algum um aspirante a Nobel, como alguns já disseram. Na minha opinião o livro vale essencialmente por dois aspectos. O primeiro é que, numa sociedade onde predomina o machismo, machismo este com raízes inegavelmente ligadas à religião, a obra realça o papel do sagrado feminino nos cultos ancestrais. O outro aspecto prende-se ao facto de ser um livro que visa a abertura de espírito. Na minha óptica, O Código da Vinci não pretende mudar convicções religiosas mas sim apelar ao espírito crítico e à reflexão, até porque o final do livro é bastante aberto.
A influência desta obra estende-se a vários níveis. Começando pelo mais óbvio, foi a reacção agressiva da Igreja. Se tivermos em conta que existem pessoas que acreditam em tudo o que lhes põem debaixo do nariz, a atitude do Vaticano pode ser, em certa medida, entendida. Entendida, mas na minha opinião, não aceite. Até porque ao censurar um livro, o Vaticano ofereceu uma excelente publicidade do mesmo. Dan Brown deve ter pulado de contente.
Por outro lado, levou a um debate intenso, desde o mais básico “Já leste?” até a documentários. O interesse pelas origens da Igreja, suas primeiras décadas e Cristianismo primitivo aumentou. A religião é um tema na ordem do dia, e parece assim continuar, agora que o “Evangelho de Judas” surgiu.
Por fim, basta entrar numa livraria para notar um boom de livros associados no estilo ou no tema ao Código da Vinci. O triller histórico está em voga e há uma infinidade de livros parasitas sobre a vida de Jesus e Maria Madalena, sobre os Templários, o Priorado de Sião, Leonardo da Vinci e sobre o próprio livro.
Gosto de me pôr a imaginar Leonardo da Vinci no seu estúdio a dar pinceladas naquela que seria a sua obra mais famosa. Será que ele podia imaginar que o enigmático sorriso da Mona Lisa alimentaria tanta discussão? Sabendo que ele era um visionário e um homem à frente no seu tempo, não me parece muito absurdo pensar que sim.

Monday, May 15, 2006

Heróis do Mar

“Um dia, uma senhora em estado de viúva recente, não encontrando outra maneira de manifestar a nova felicidade que lhe inundava o ser, e se bem que com a ligeira dor de saber que, não morrendo ela, nunca mais voltaria a ver o pranteado defunto, lembrou-se de pendurar para a rua, na sacada florida da sua casa de jantar, a bandeira nacional. E foi o que se costuma chamar meu dito, meu feito. E menos de quarenta e oito horas o embandeiramento alastrou por todo o país, as cores e os símbolos das bandeiras tomaram conta da paisagem (…). Era impossível resistir a um tal fervor patriótico, sobretudo porque, vindas não se sabia de onde, haviam começado a difundir-se certas declarações inquietantes, para não dizer francamente ameaçadoras, como por exemplo, Quem não puser a imortal bandeira da pátria à janela de sua casa, não merece estar vivo.”
José Saramago, in Intermitências da Morte

Depois de termos assistido à proliferação de bandeiras nacionais, que rapidamente desbotavam ao sol veranil, aquando do Euro2004, a nova moda para este mundial são as camisolas da selecção.
Com uma publicidade tão emotiva, que quase leva às lágrimas qualquer português que venera a pátria e os seus símbolos, só me resta esperar que as camisolas sejam feitas de material mais resistente e duradouro. Sim, porque nada me demove da ideia que à custa de material tão rasco como aquele com que eram feitas as bandeiras, vendidas, se não me falha a memória a 1€ (e o que é um euro para um patriota digno desse epíteto?), não conseguimos alcançar o título. Não admira. Do orgulhoso vermelho da nossa bandeira só restava um rosa frouxo, que nenhum espírito exaltava nem incentivava a dar pontapés na bola com mais garra.
Passados dois anos, e porque um evento de maior calibre exige manifestações variadas, no dia 20 deste mês, no Estádio Nacional do Jamor, vão construir “a mais bela bandeira do mundo” (mais informações
www.amaisbelabandeiradomundo.com). Nesse mesmo site, há um painel onde passam as promessas dos portugueses caso a nossa selecção ganhe o Mundial. Quem tiver paciência para ver um bocadinho, vai encontrar coisas tão absurdas e estupidificantes como “Prometo deixar de fumar”, “Prometo controlar o meu feitio” e “Prometo cantar o hino todos os dias antes de me deitar”.
E ainda continuamos à espera dos benefícios para Portugal de tanto dinheiro esbanjado no Euro2004.

Sunday, May 07, 2006

"É isso que vocês aprendem na escola"

Quem anda nos transportes públicos sabe que se ouve todo o tipo de conversas entre os outros passageiros, desde o jantar para esse dia até ao episódio da novela do dia anterior. Principalmente, num meio pequeno como São Miguel, onde se encontram pessoas conhecidas até na outra ponta da ilha.
Quando outro dia vinha das aulas da universidade, o autocarro vinha a abarrotar até às costuras. Não fosse o facto de ser um veículo ainda novo, pareceria um autocarro do Zimbabué, ou coisa que o valha. Vinham também uns miúdos da escola que não se coibiam de se insultar em voz alta, desde os costumeiros palavrões até aos insultos mais curiosos. Um deles mandou veementemente outro ir fazer determinada coisa, que penso não ser necessário aqui citar porque todos o compreendem. Uma senhora de meia-idade começou a barafustar, a perguntar-lhe se tinha noção de onde se encontrava e atirou-lhe a retórica mais batida que se pode imaginar sobre a educação das crianças: “É isso que vocês aprendem na escola?”. Aliás, minto. O que ela disse foi “É isso que vocês aprendem na iscola?”.
Devo dizer que os putos também me estavam a irritar solenemente, não por estarem a dizer palavrões a torto e a direito, mas porque estavam a fazer uma chiadeira dos diabos. Tinha tido aulas durante o dia inteiro e a minha cabeça ameaçava explodir.
Contudo aquela senhora enervou-me mais ainda. Tal como todos os clichés esse é positivamente ridículo. Digno de quem não pensa pela sua cabeça, limitando-se a repetir uma frase que ouviu outrem citar.
Será que vale a pena rebater uma lógica tão entranhada? Talvez. Fiquei com vontade de responder à senhora que não há uma, mas diversas escolas. Uma delas é a educação que cada um recebe em casa, que apesar de não ser completa, é básica. Sou da opinião que cada um de nós depois a aperfeiçoa, consoante o seu carácter, personalidade e julgamento.
Na escola pública o que se ensina, ou pelo menos o que se tenta, é a falar melhor, a crescer culturalmente, aprender a raciocinar com lógica entre outros conteúdos programáticos.
Também eu aprendi palavrões na escola. E vários. Agora vai uma diferença entre os ter aprendido e andar a dizê-los alto e bom som.
De facto não lhe disse isso, até porque não tinha pachorra para fazê-lo e também porque é uma lógica ainda grande de explicar-lhe.
Talvez lhe devesse ter dito “No tempo de Salazar é que era bom!” mas duvido que ela percebesse o que eu realmente queria dizer com aquilo.