A minha vida é também papel
“No princípio, era o verbo, e eu lia tudo: «Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido» (Proust). Não esqueço essas horas, nem dou por inconvenientes a desordem, o acaso e a liberdade com que li o que li, porque, sem saber, assim me preparei para o inesperado do mundo. Hoje, que vejo gente a ler com tanta avareza e tanto cálculo, como se a vida fosse uma disciplina de um curso, lembro-me desses dias e dessas noites de papel, em que era feliz por trocar tudo por um livro que tinha debaixo dos olhos ávidos e cansados.”
José Manuel dos Santos
Uma das experiências mais interessantes de um leitor é ver transcrita para o papel uma ideia que já lhe tinha cruzado os pensamentos ou mesmo uma que germinava incógnita no mais profundo de si. O leitor lê e pensa: “é isso mesmo”. Nesse momento, esse diálogo mudo que existe apenas na mente de quem lê estabelece uma ligação de cumplicidade. É a palavra escrita, o suporte físico do pensamento abstracto, o veículo de comunicações de outra forma impossíveis, ecos do passado, sombras indefinidas do futuro e crónicas do que nunca há-de ser.
Os livros vivem, e a sua vinda prolonga-se mais por cada alma humana que engrandecem. Respiram de cada vez que uma mão lhes folheia as páginas que faltam até ao fim. Sussurram segredos. E como cada vida humana carregam uma história a ser desvendada pacientemente, impossível de dissecar numa primeira abordagem e que ao fim de muito tempo ainda nos pode surpreender.